Tempo e Narrativa

08/11/2010 23:08

Sirleide Pereira*

 

Ao ler o pensamento de Paul Ricoeur sobre o tempo e narrativa, na obra A memória, a história, o esquecimento, publicada no Brasil pela Editora Unicamp, em 2007, fui acometida por um desejo brutal de romper com o método dos estudos obrigatórios para a academia e sair jogando palavras, sensações e emoções sobre qualquer suporte. Não deixa de ser uma tentativa de me rebelar contra o próprio tempo estabelecido para refletir academicamente sobre o que pesquisamos. Mas quem é acadêmico, seja pesquisador, professor ou aprendiz de investigação científica sabe que isso, às vezes, é necessário, mesmo que não seja produtivo ou valorado academicamente. Mas, como toda rebeldia tem seu preço e sua razão, eu me rendi às emoções.

O tempo não existe. Mas o homem, de um certo tempo para cá, depois que desenvergou a espinha e andou sobr e duas pernas, cismou em medi-lo, quantificá-lo. Ciente de que o tempo não volta, não se recupera, não se reconstrói, mesmo assim o homem teve a audácia de aprisioná-lo. Quer saber onde? Nos calendários, nos anuários, nas agendas. Até nas celas das prisões. Com a audácia que lhe é peculiar, o homem chegou ao ponto de prevê o tempo e, como quem diz de peito estufado: essa fera eu domei.

Pura ilusão, depois de lermos um pouco sobre esse indomável inexistente tempo. É a narrativa que coroa esse falso superpoder humano. E muito fácil. A narrativa possibilita ao homem expressar/externar o pensamento, construir cultura e até cultuar ilusões. O tempo continua sendo e será como ele sempre foi: uma corrente contínua, como só ele sabe ser, independente, sem dar satisfações a ninguém. 

É a autonomia do tempo diante de nós, meus caros. Destarte, tudo isso que estou dizendo agora é pura narrativa, uma das maiores invenções do homem, sua maior tecnologia, cuja ferramenta, a linguagem, nos faz parecer imortais. Tudo o que fazemos ou deixamos de fazer depois que aprendemos a registrar nossa própria passagem na terra – inscrições, escritas, imagens ‒ são vestígios de memória, indícios históricos. Ao criar, fazer, produzir, deixamos registrado tudo que fizemos para a posteridade. Que poder é maior do que este? Tudo que é inscrito, escrito, de registrado, corre o risco de parecer eterno, de transcender ao tempo, visto que os processos de conservação dos registros também são formas de enfrentarmos o desafio de superar o tempo.

Paul Ricceur diz nessa sua principal obra que a experiência temporal e a narrativa se enfrentam diretamente, de forma a gerar um impasse sobre a memória e sobre o esquecimento porque a memória e o esquecimento são níveis intermediários entre o tempo e a narrativa. Eu acrescentaria que dilaceradamente, como num duelo, porque a narrativa não tirou a humanidade das trevas como muitos iluministas quiseram fazer o mundo ocidental crer, visto que a oralidade alimentava a memória pessoal. Mas a narrativa nos deu o superpoder da eternidade histórica, por meio da memória social.

Ao fazer vários seminários sobre essa temática, Paul Ricoeur acabou por publicar uma obra indispensável para quem se interessa pelo assunto tempo, narrativa, memória, historiografia, perdão e esquecimento. Adjetivado por ele como uma “embarcação”, A memória, a história, o esquecimento é capaz de nos leva, a viajar nos mares do mais profundo “eu”; e quando submergimos, temos a impressão de que entramos em contato com portos nunca antes sentidos, vistos, tocados. Da viagem proporcionada por essa embarcação-livro de Ricoeur, voltamos remexidos e bem mais conscientes. São novos olhares para esse insuperável tempo, nova forma de encararmos nossas memórias pessoais e de lidarmos com as memórias sociais coletivas. E se você fizer essa leitura acompanhada por uma suave flauta inca, aí sim, esse encontro poderá ter outros significados. Para mim, tão mais profundo que jujguei estar conversando com deuses. Sejam quais forem os deuses em que você crer, vale a pena. Quer maior glória? Só a do inexistente tempo.

 

Obra consultada: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Editora Unicamp: Campinas, 2007. 

 

*Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFPB.

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