Leitura poética de uma biblioteca encantada

17/10/2010 12:52

Maria das Graças Targino*

 

Há insistentes questionamentos sobre o futuro do livro como suporte e das bibliotecas como espaço físico. São discussões antigas que permeiam o imaginário do ser humano. Lembro, com detalhes, a chegada do microfilme e o temor que se instaura, à época, anos 80, acerca da sobrevivência dos livros. Décadas passam. Eles, como heróis, sobrevivem. As bibliotecas, em suas diferentes tipologias, incluindo os carros-bibliotecas, estão por todas as partes e pelos mais diferentes países. Cidades pequeninas mantêm o hábito de localizar sua biblioteca municipal ao centro da cidade, na praça mais visitada, em geral, próxima à Catedral...

Tudo isto para falar da experiência de visitar a Biblioteca General Histórica de la Universidad de Salamanca. Trata-se de uma conquista, haja vista que consulta ao Fundo Histórico requer autorização prévia e devidamente justificada. De fato, há que preservar. Justifica-se todo o cuidado que ronda seu conteúdo. Trata-se de um tesouro em pleno século XXI, que data de 1218, e que contém materiais preciosos e guarda histórias de poesia e de terror. Poesia advinda de sonhos e conhecimentos registrados. Terror, face às fases de dura censura vividas em diferentes épocas.

A princípio, nos tempos da inquisição, época de extrema crueldade, e, por ironia, protagonizada pela própria Igreja Católica. Isto porque, a inquisição medieval, que dá origem às demais, surge, ainda, em 1184 (antes da criação da Biblioteca General Histórica...), ao sul da França e ao norte da Itália, indo do final do século XI até meados do século XIV. Combate com furor o sincretismo religioso, em especial, no caso dos cátaros ou albigenses, adeptos a um movimento cristão considerado paradoxalmente herético pela própria Igreja, por sua aproximação com o gnosticismo do início da era cristã. A “caça às bruxas” chega aos mais diferentes rincões, mas, reconhecidamente, a inquisição espanhola é uma das mais cruéis.

Estabelecida em 1 de novembro de 1478, através de Bula do Papa Sisto IV, além de assumir a nomeação ou demissão dos monarcas, seus autos de fé se caracterizam por extrema barbárie. Seres humanos são queimados como manadas de gado, com seus escritos ou com seus livros. Quando têm mais sorte, são condenados à prisão perpétua. Depois de muitas cenas aterrorizantes, em 1482, o próprio Papa volta atrás e exige que os inquisidores se mantenham subordinados aos bispos locais. Indiferente aos protestos do Rei Fernando, em 17 de outubro de 1483, nova bula papal estabelece o Consejo de La Suprema y General Inquisición como autoridade máxima da inquisição. O cargo de inquisidor geral é ocupado pela primeira vez por Tomás de Torquemada. Até sua morte, em 1498, este mantém poder e compete ostensivamente com os reis Fernando e Isabel, embora seja seu aliado em termos formais, e a quem compete punir judeus e mouros, que se dizem convertidos ao catolicismo, mas continuam a prática de seus credos, às ocultas. De qualquer forma,  a inquisição em território espanhol vai até 1492, quando se dá, por fim, a expulsão dos judeus do País.

 Afora a  inquisição, há que se registrar a longa ditadura do General Francisco Franco, entre 1939 e 1976. Por sua ideologia (implícita ou explícita), o franquismo muito se aproxima do fascismo. Fundamenta-se em três pilares: a unidade nacional espanhola; o catolicismo e o anticomunismo. Assim, inquisição e franquismo, juntos,   constituem ameaça feroz contra a possibilidade humana de se expressar livremente, resultando em ações que, transcorridos séculos, a coleção da Biblioteca General Histórica... fornece uma idéia menos abstrata e mais dolorida.

Caminhar por suas estanterias corresponde a uma longa viagem por caminhos encantados. Basta soltar a imaginação. Imaginar mãos cansadas depois de um dia de trabalho a folhear aqueles registros tão bem cuidados. Imaginar doces vozes a sussurrar palavras de amor. Imaginar vozes rudes a decorar trechos jurídicos ou técnicos. Imaginar palavras murmuradas para descansar os enfermos. Imaginar, talvez,  vozes cansadas do peso da vida... Mas, há caminhos destroçados ou desfeitos. Há publicações com folhas inteiras arrancadas por censores. Outras vezes, estes se restringem a colar um papel sobre os escritos. Há trechos riscados fortemente. E isto se vê em qualquer dos setores da Biblioteca.

 De início, os manuscritos, cuja coleção abriga cerca de três mil volumes. Sua procedência é diversa e a incorporação à coleção vem se produzindo ao decorrer dos séculos. O manuscrito mais antigo é o Liber canticorum et horarum, copiado no ano de 1059 para Sancha I de Leão. Em 1032, casou-se com um dos príncipes herdeiros do reino de Navarro, Fernando I, rei de León, capital da província de mesmo nome, na comunidade autônoma de Castilla y León. Entre os manuscritos de natureza literária chama a atenção: Libro de buen amor; Cancionero; Las virtuosas y claras mujeres.

As publicações periódicas, por sua vez, somam, aproximadamente, 2.068 títulos de revistas e 220 de jornais, com destaque para obras de Salamanca e de outras províncias da Espanha. Os 483 incunábulos fazem a festa para os aficionados. Em sua maioria (40%), esses livros impressos nos primórdios da imprensa, a partir de meados do século XV até o início do século XVI, advêm de Veneza. Por fim, o acervo dos impressos antigos (séculos XVI a XVIII) reúne mais ou menos 60.000 volumes, cujo conteúdo, em coerência com a data de origem da Biblioteca e de seu acervo, enfoca, sobretudo, obras de natureza teológica e jurídica, com a presença de disciplinas históricas, filológicas e científicas.

Nada disto soa excepcional: uma biblioteca antiga. Mas há muito mais. Há um mistério que ronda o ar. Em torno das paredes e das estanterias imaculadamente bem cuidadas, um sentimento de paz e, ao mesmo tempo, a noção de quão grandiosa é a habilidade dos homens. Homens anônimos, que viveram uma vida para registrar num frágil pergaminho os momentos de sua gente, com perfeição de traços e ilustrações de perfeição ímpar.

Há, também, iniciativas comoventes promovidas pela equipe da própria Biblioteca. Há anos, há quem se encarregue de recolher, cuidadosamente, o que se encontra perdido nas páginas dos livros, agora, quase intocados. Há cartas de amor lidas ou esquecidas. Há cobranças comerciais. Há registro da rotina do dia-a-dia de alguém, que assina como “fulano de tal”, e que, ao tudo indica, escolheu a vida religiosa. Há listas de compra, e, pasmem, dois “ancestrais” de camisinhas reinam absolutos e despertam risos. São preservativos feitos com tripas, como as que se usam, hoje, para as lingüiças.

 E o mais interessante em toda a visita, é a percepção nítida que se as publicações eletrônicas vieram para ficar (e vão ficar), a magia do impresso é irreversível, independentemente da curiosidade que desperta, mais e mais, o iPad com seu toque de modernidade e comodidade. Porém, a aura do papel é cultural e nos parece infinda, reiterando a possibilidade de ler mais do que livros: ler poeticamente uma biblioteca encantada, plena de mil histórias e de mil sonhos.

 

*Maria das Graças TARGINO

Jornalista, Profa. Doutora em Ciência da Informação

Pós-Doutora em Jornalismo 

e-mail: gracatargino@hotmail.com


Publicação autorizada pela autora

TARGINO, M. das G. Leitura poética de uma biblioteca encantada. Disponível em: <https://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=554>. Acesso em: 14 out. 2010. (Coluna Além das Bibliotecas)

—————

Voltar